segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Brutalidades.

O poder de síntese é uma das capacidades que mais aprecio nas pessoas.

Mas, quando as pessoas usam esse poder de síntese , o unem à sensibilidade que possuem, e produzem textos que em meio dúzia de parágrafos definem um pedaço de alma humana (neste caso...confesso que parte da minha alma também),
permitam-me que me pasme, limpe as hipotéticas lágrimas que a peça me possa ter provocado, e o partilhe convosco.

O autor desta belíssima brutalidade chama-se Gonçalo M. Tavares, e eu só tenho que lhe fazer a devida vénia. O texto faz parte da crónica que ele apresentou na Visão do passado dia 18 de Setembro. Sem mais, aqui fica o texto que me ficou na mente nos ultimos dias:

"O CÃO
Perto da Praça de Espanha, em Lisboa, vê-se um cão, ao longe (os animais são assim, quase verticais) e só depois se vê o que está em baixo, no chão. O cão guarda algo como um bom cão de guarda. À primeira vista, em baixo dele, roupa apenas, um amontoado. Mas qual o cão que guarda tecidos?
O cão guarda um homem, meu caro.
Cão atencioso, gentil, olha para baixo e pergunta, naquele modo mudo de animal: estás bem? Depois olha para cima e em redor: quem vem aí? Que ninguém se aproxime. O dócil cão está preparado para mostrar a maldade inteira que os amantes têm. Está tão ligado ao dono, tem tanto afecto por ele, que será capaz de exercer muita violência contra quem se aproximar. Para defender, atacará.
[Por vezes, ao lado do cão, parecemos pertencer a uma espécie animal de ética mais baixa, mais mesquinha. Nesta situação, o cão é mais humano e mais vertical do que parece, até porque o homem quando dorme (ou está morto) abandona a pose de que nos orgulhamos.
Bem, mas não falemos do cão nem de quem dorme ou está morto - não, não estava morto, mexeu-se.]
Eis a história do mundo e também dos humanos: tudo o que amas pode ser, em parte, transferido para uma violência, para uma agressividade em relação ao resto do mundo. Amar alguém é estar preparado para odiar muitos, para os atacar, caso estes interfiram negativamente no amor em si (no processo) ou na coisa amada.
O amor pois como coisa bela e alta e extraordinária, sim, mas apenas para quem é o sujeito ou o objecto do amor. O que fica de fora, de fora fica, isto é: transforma-se em potencial inimigo.
Por isso aquele cão assusta: tem humanidade a mais. Quando baixa a cabeça em direcção ao dono ama, quando a levanta está preparado para odiar. "

Para terminar...a musica do dia. Porque "nada vai ser fácil, nunca foi".
(Se alguém quiser fazer uma estátua ao Manel Cruz, eu entro na vaquinha para lhe construir um busto em ouro, e tal.)



Leva qualquer eu a meu dia
Da-me paz eu só quero estar bem
Foi só mais um quarto uma cama
No meu sonho era tudo o que eu queria

Quando alguém deixar de viver aqui
Espera que ao voltar seja para ti
Nada vai ser fácil
Nunca foi
Quando alguém deixar de te dar amor
Pensa que há quem viva do teu calor
Hoje é só um dia e vai voltar
Amanhã

E não foi assim que o tempo nos fez
E fez assim com todos nós
E não foi assim que a razão nos amou
E fez assim com todos nós
São coisas
São coisas
São só coisas
São coisas

Se uma voz nos diz que é viver em vao
Pra que raio fiz eu esta canção
E se o fim é certo
Eu quero estar cá amanhã

E não foi assim que o tempo nos fez
E fez assim com todos nós
E nao foi assim que a razão nos amou
E fez assim com todos nós
São coisas
São coisas
São só coisas
São coisas

Eu estou bem
Quase tão bem
Vê como é bom voltar a dizer
Eu estou bem
Quase tão bem
Vê como é bom voltar a dizer
Eu estou quase a viver

1 comentário:

V. disse...

"O amor pois como coisa bela e alta e extraordinária, sim, mas apenas para quem é o sujeito ou o objecto do amor. O que fica de fora, de fora fica, isto é: transforma-se em potencial inimigo."

Não poderia concordar mais.

Parabéns pela beleza do post.